Há muitos
anos também eu fiz parte dos muitos peregrinos que perto do 13 de Maio caminham
com destino a Fátima. Por quatro anos, nem sempre seguidos, vivi a experiência
da peregrinação ao santuário. Três deles, porque ia acompanhar familiares, ou
apenas, porque sim.
Ainda
adolescentes, eu e a minha irmã, fomos acompanhar a nossa mãe que queria ir
pagar uma promessa, ou agradecer à santa, não sei… Saímos de casa de madrugada
e seguimos o percurso habitual de quem vai destes lados. A menos de meio
caminho tivemos uma baixa. A minha mãe! Podíamos ter desistido, mas não. O
espírito da coisa e o “sangue na guelra” da juventude (como dizia o meu pai),
têm muita força. Continuamos as duas ora sozinhas, ora juntando-nos a outros
caminhantes. Os nossos pais seguiram-nos na carrinha com os mantimentos e os
colchões onde por algumas horas descansámos os corpos doridos, numas
instalações cedidas para o efeito, algures lá pelo meio. No segundo dia, ainda
de noite, voltámos à estrada e acabámos por encontrar um grupo já acostumado
àquelas andanças, que nos guiou por atalhos e na escuridão, em que não se via
nem um palmo à frente do nariz. Valeu pela experiência. No ano seguinte elas
repetiram, sem mim, mas acompanhadas de um grupo de amigos. Correu bem e a
minha mãe conseguiu concluir o que a impelia a ir a Fátima a pé.
Nas outras
minhas duas aventuras como peregrina e que foram as últimas, numa delas,
acompanhei pela segunda vez aquele que já era meu marido. Jurei para nunca
mais. Fizemos diferente, saímos de casa ainda a noite era uma criança e com
isso e com o muito frio que fazia sentimos necessidade de nos abrigar na
soleira de uma porta onde sentados e tendo apenas o calor um do outro como
conforto, adormecemos. Não se via viva ‘alma naquela terra e o silêncio era
absoluto, mas mesmo assim e para não sermos surpreendidos ali, voltámos ao
caminho. Lá mais à frente, sonolentos e gelados, procurámos abrigo numa paragem
de autocarro, onde dormitámos por algum tempo, enrolados um no outro. Mas até
aqui tudo bem e os quilómetros que fizemos a seguir também, até certo
ponto…Diria mais, depois de despertos não havia quem nos apanhasse! Andámos
sempre de seguida sem paragens e a passo rápido. O pior foi quando eu me vi a
ficar com as pernas presas e se parava um pouco, ficava ainda com mais
dificuldade em recomeçar. Pela hora do almoço os meus pais foram ao nosso
encontro e fizemos um picnic na berma da estrada, onde recuperámos forças e eu
apanhei boleia. O marido seguiu sozinho. Grande homem, que percorreu os últimos
trinta e tal ou quarenta quilómetros a correr! Por algum tempo chegou a ter um
companheiro de corrida, mas que não lhe aguentou a pedalada. E nós, no carro,
íamos fazendo paragens e seguindo-o até ao destino. Foi a minha última
peregrinação!
Numa vez
anterior, e depois de uma má experiência, fui eu e a minha irmã. As duas
sozinhas, mas prevenidas com fruta açucarada e sapatilhas bem folgadas e
usadas. Fizemos o percurso em dois dias e pelo meio uma paragem para ir a casa
descansar e prepararmo-nos para o dia seguinte. Alguém foi buscar-nos e levar
de novo ao ponto em que ficámos na véspera. Correu tudo muito bem e sem bolhas.
Fomos pelo espírito de aventura. Valeu o que valeu!
Propositadamente,
deixei para o fim a experiência mais dolorosa de todas, a minha segunda ida a
Fátima a pé e a única em que fui por uma promessa. Penso que foi tão difícil a
peregrinação, como o foi o acontecimento que lhe deu origem. Disse alguém pelo
caminho e já a poucos quilómetros do final, que é tão mais custosa a paga
quanto maior for a bênção que obtivemos! Talvez o seja! Cometi a asneira de
levar umas sapatilhas a estrear que me fizeram os pés numa bolha só, de ponta a
ponta e no dia seguinte fiquei de cama com febre. Dessa vez partimos de
madrugada e à hora do almoço estávamos a quatro quilómetros do santuário. Nunca
aqueles últimos 4 km me pareceram tão longos. Levámos horas para os percorrer,
mas não desisti, mesmo tendo quase perdido os sentidos algures ali à beira da
estrada. Fui socorrida por um grupo de peregrinos vindos de Lisboa, no qual ia
Frei Hermano da Câmara. A minha persistência taurina, alimentada pela fé e pela
lembrança recente de um dos episódios mais difíceis da minha vida, não me
permitiam desistir. Hoje, quando olho para trás e revejo aquele momento, sinto
uma ternura imensa por aquele jovem casalito, que debaixo de chuva e abrigados
no mesmo guarda-chuva, ele aparando-a e ela com as lágrimas a correrem pelo
rosto, pisaram finalmente o chão de destino. Deles emanava um sentimento muito
forte de amor, o mesmo amor que os levou até ali!
Hoje, não
arriscaria tanto e nem me submeteria a tal sofrimento. Eu mudei e os meus
valores de referência também já não são os mesmos. A Fé continua a existir, mas
foi-se deslocando noutros sentidos. No entanto, não deixo de sentir um enorme
respeito por todos os peregrinos, porque também já estive no lugar deles e sei
o que os move.
Imagem daqui
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