Chegou-me às mãos um livro
muito especial, tão especial, que o ando a ler com todo o cuidado como se de
uma peça rara se tratasse e tão delicada como a mais fina das porcelanas, que ao
menor descuido se pode partir…
Tomei a ousadia de
transcrever alguns trechos da obra, como uma pequena homenagem ao seu autor,
pessoa conhecida das minhas relações. Trata-se de um senhor que nasceu sob as
energias do Sol no signo de Touro, (tal como eu J ) e no
penúltimo ano da 1ª República Portuguesa, o que dá umas boas nove décadas de
muita sabedoria e um sem fim de memórias!
Como era habitual noutros
tempos em certas alturas do ano, especialmente na época das vindimas, de outras
regiões do país para terras do Ribatejo, vinham os ranchos a que denominavam de
“as barroas”. Muitas eram mulheres ainda jovens e solteiras, pelo que,
terminado o trabalho no campo, umas voltavam às suas terras e outras ficavam
por cá…
“Chegado o fim-de-semana, o
rancho vem para casa. É esperado com ansiedade pelos homens do lagar, elas
durante a semana treinavam em cantigas. Vêm mais queimadas do sol, talvez
cansadas mas animadas. Entram no portão largo, desafiadoras, entre risos e
galhofas, lançando…
Uma voz que se faz ouvir;
Oh parreira dá-me um cacho,
Oh cacho dá-me um baguinho,
Inda encontrarei o mê amor
Nos passos do mê caminho.
O Caixinha, que ficara de olho
na rapariga, não se contém e lança:
Deitei o limão a correr
À beira de ti parou…
Quando o limão te quer bem
Que fará quem o deitou!
A visada responde de imediato:
Vai de roda, vai de roda,
Não ‘tejas com brincadeira
O mê par é guardador
Bota os pintos na capoeira.
Há palmas e assobios, mas o
Caixinha reage com calma, suplicante:
Um favor te vou pedir
Amor, aperta-me a mão:
‘Inda espero de ser teu
Só que por ora, ‘inda não!
Mas a rapariga é rápida na
resposta:
Já pisaste a uva branca
A uva tinta vais pisar;
Só a mim tu não pisas
Não sou uva p’ró teu lagar!
O Caixinha oscilou face à ‘estocada’.
Todos vêem que o rapaz está a ficar ‘pelo beicinho’ com a moça… Reage, porém e
numa espécie de apelo atira em voz doce:
Oh cachopa, oh meu carinho,
Oh anjo do meu altar:
Diz um ditado antigo
‘Quem desdenha, quer comprar’!
Antes que a rapariga tenha
oportunidade de responder, o Zé Tomás ‘saca da gaita-de-beiços’ e sai-se com o
som de um corridinho mexido.”…
E não é que a cachopa ficou mesmo com o Caixinha?!
Juntaram os trapinhos e o rancho regressou sem ela! (conclusão tirada pela
continuação da leitura)
“ Ante a Lei das Recordações,
não se pode escamotear a verdade…
… nem apagar os erros – se os
erros serão tropeços nos escolhos que a vida coloca nos caminhos do aprendizado
de conhecimentos…
Sensato seria deixá-los na
sombra do passado, como passado que é…
… mas a mente sã alimenta-se de memórias!”
Por tal, e porque as suas
memórias pessoais só a ele pertencem, limito-me a transcrever para aqui, só
algumas partes que considero que fazem parte das memórias colectivas…
A título de curiosidade,
partilho com os meus leitores duas preciosidades de outros tempos:
- Chegou a existir um imposto
sobre o uso do isqueiro em espaços públicos, pelo que, a falta do respectivo
cartão para uso do dito cujo, dava direito a multa ou até a prisão na falta de
pagamento.
Aos fumadores de hoje, quem diria
hein??!! Muita gentinha hoje seria presa se essa lei ainda se mantivesse em
vigor!
- Um outro dado que não posso
deixar passar em branco, as portagens! Ainda nós reclamamos das que temos actualmente
nas auto-estradas e das famosas scuts…
E não é que em tempos se
cobrava portagem a quem passava a ponde D. Luís, à saída da mesma, do lado de
Santarém?! Meio tostão era o que cada um pagava ao passar por lá e não era só
de carro, acreditem, porque esses havia-os bem poucos.
Com uma mão cheia (ou as
duas!), de cargos repartidos entre Repartições de Finanças pelo país fora,
Tribunal e Ensino, ao que se soma ainda o de Director de um jornal regional,
entre outras ocupações…Nascido em meio rural, onde o costume ficava-se por
seguir as pisadas dos pais e de preferência servir de mão-de-obra gratuita ao
sustento da família, não era qualquer um que fazia mais do que o ensino
primário e muitas vezes nem isso! Falo-vos dos idos anos 30 e 40 do século
passado. No caso deste ilustre senhor, valeu-lhe a sua enorme vontade de
aprender e persistência. A par de tudo isto, desenvolveu ainda o gosto (se bem
o entendi), pela escrita de literatura policial.
Pelo que é uma inspiração e
um incentivo:
“ O trabalho é, de resto, o
germe da condição humana: física, mental e moral. É no esforço do trabalho que
o corpo se desenvolve e fortifica, a mente, aberta à capacidade de inteligência
criadora, realiza-se e recria-se, testa e corrige o carácter e senso moral
dessa condição.”
Ainda mais que, fiquei a
saber também, trabalhou numa terra que me enche o imaginário e as sensações!
Óbidos! Terra dos meus encantos. Devo ter lá vivido numa outra encarnação! J
Ao autor, Sr. M.C., muito
obrigada por nos escancarar o seu cofre das memórias. Para mim foi uma
verdadeira viagem no tempo, a partir da qual irei ver com outros olhos as ruas
da nossa pequena cidade e em especial a “rua da minha mãe” e a casa que agora é
dela!